Conjuntura

Quatro polêmicas com o reformismo

No dia 28 de junho, o marxista Valerio Arcary — membro do Resistência, corrente interna do PSOL –, publicou na Revista Fórum o texto “Três polêmicas clássicas com o ultraesquerdismo”, no qual apresenta uma visão negativa e até desonesta do pensamento e das práticas anarquistas.

A Coordenação Anarquista Brasileira atua em mais de uma dezena de estados do país, por meio de organizações específicas anarquistas, contribuindo com lutas estudantis, sindicais, agrárias e comunitárias, e construindo o Poder Popular contra o sistema capitalista, patriarcal e racista. Sentimos a necessidade de realizar a devida crítica a esse texto, que julgamos não corresponder aos fatos.

1 – Anarquismo, insurrecionalismo e a reação do oprimido

Arcary abre seu texto citando um ato insurrecional realizado por um anarquista. De forma descontextualizada, ele apresenta como sendo uma estratégia anarquista a realização dessas ações, que ele julga negativas.

Em primeiro lugar, assim como no marxismo existem diferenças entre as correntes, dentro do anarquismo isso não é diferente. Apesar do anarquismo não ser pacifista e reconhecer que a violência existe na sociedade e na disputa entre forças — tal como toda ideologia socialista revolucionária –, historicamente, a maioria dos anarquistas não apoiou as ações insurrecionalistas individuais. Mesmo quando houve apoio, também a maioria dos anarquistas enfatizou que essas ações deveriam ocorrer em determinados contextos. Existiram muito mais anarquistas construindo greves gerais e revoluções sociais do que jogando bombas individualmente, como centro da estratégia, e é curioso como Arcary ignora esse fato. No Brasil, foram militantes anarquistas que ergueram os primeiros sindicatos e impulsionaram a Greve de 1917, que paralisou São Paulo e permitiu as primeiras conquistas trabalhistas.

Em segundo lugar, não se compara a reação do oprimido com a violência do opressor. Na situação apresentada no texto de Arcary, o governo estadunidense havia iniciado uma perseguição massiva contra a comunidade imigrante italiana, o movimento operário e a militância anarquista. Sacco e Vanzetti, presos injustamente, foram condenados à morte em um julgamento fajuto e manobrado. Independentemente da divergência de táticas, é preciso ter cuidado com o discurso público para não fomentar a criminalização operada pelo Estado.

2 – Anarquismo e Poder

A associação do Anarquismo com uma suposta violência irracional e cega não é o único espantalho do texto. Arcary então diz:

“Na etapa histórica aberta pela restauração capitalista, ideias de inspiração anarquista, com vocabulário autonomista voltaram a ter influência na juventude. A mais poderosa é a utopia de que seria possível mudar o mundo sem lutar pelo poder. Esta utopia é regressiva. É um retorno romantizado à infância ideológica do movimento dos trabalhadores na Europa do século XIX.”

Coloquemos as palavras em seus respectivos sentidos. O anarquismo não é contra o “poder”, mas contra a dominação. Se anarquistas fossem contra a construção de uma forma de poder, não teriam participado e protagonizado revoluções no México (1910-1913), na Ucrânia (1919-1921), na Coreia (1929-1932) e na Espanha (1936-1939).

O que Arcary quer defender não é a necessidade de um poder popular ou da autogestão da classe trabalhadora, mas a conquista de posições dentro do Estado burguês. A estrutura estatal é uma forma de organização hierárquica e que reproduz relações de dominação. Conforme anarquistas sempre disseram, e a história confirmou, a burocracia estatal (políticos, juízes, generais, etc.) faz parte das classes dominantes, e é tão opressora quanto a burguesia capitalista.

Além disso, inúmeros anarquistas apontaram a necessidade de que táticas e estratégias estivessem de acordo com a realidade social, política, cultural e econômica. Está presente na Aliança de Mikhail Bakunin, na Plataforma Organizacional de Nestor Makhno e Ida Mett, no Especifismo da Federação Anarquista Uruguaia, entre outras experiências do passado ou do presente. Mas Arcary não para por aí. Diz:

“A narrativa liberal que nivela as ditaduras burguesas com os regimes estalinistas de partido único passou a ser hegemônica, diminuindo a influência do projeto socialista. Trata-se de uma falsificação histórica grotesca. Mas exerce muita pressão sobre a nova geração sobre diferentes formas, às vezes, uma identidade ‘antifa’ que se engaja em uma estratégia de ‘ação direta’.”

Em um parágrafo, Arcary consegue associar críticas de esquerda ao stalinismo com liberalismo e beirar a criminalização do movimento antifascista. Vamos por partes.

Primeiramente, “Antifa” é um movimento amplo e diversificado de combate ao fascismo, que vem ganhando força diante da ascensão de movimentos de extrema direita em diversos países. Não pode ser resumido a uma identidade, estratégia ou ideologia, como faz Arcary. Mais uma vez, a discussão é complexa. Num contexto em que o governo Bolsonaro prepara “listas de Antifas” e os associa ao terrorismo, isso deve ser tratado com mais responsabilidade.

Sobre os regimes stalinistas, é curiosa a afirmação vinda de um reconhecido trotskista. Se anarquistas e outros setores da esquerda realmente equiparassem, de forma acrítica e simplista, regimes burgueses e stalinistas, não veríamos socialistas anarquistas em manifestações, greves e ações do conjunto da esquerda, nas quais também estão presentes defensores do “socialismo soviético”. Nenhuma organização anarquista tratou ou trata partidos marxistas da mesma forma que se deve tratar uma organização liberal, como o MBL ou o Partido NOVO.

No entanto, isso não deve impedir a justa análise crítica. Os regimes stalinistas perseguiram e assassinaram anarquistas e socialistas dissidentes, prenderam membros da comunidade LGBTQIA+, reprimiram greves e minorias étnicas, adotaram práticas imperialistas e muitas outras ações contrárias ao nosso projeto de libertação social. Afirmar, por um lado, que não se pode avaliar esses movimentos criticamente, para supostamente não fazer coro com a burguesia liberal, mas, por outro lado, condenar grupos de esquerda radical, fazendo justamente coro com a narrativa liberal — esta é a incrível façanha de Arcary.

3 – “Frente Única de Esquerda” ou eleições em 2022

O que está, enfim, por trás das críticas de Valerio Arcary? O cronograma eleitoral de 2022.

Para o Resistência, sua corrente interna do PSOL, é preciso uma frente ampla em torno da candidatura de Lula, e é dever de toda a esquerda direcionar seus esforços para tal. Não é derrotar Jair Bolsonaro, impedir a destruição de direitos ou construir um processo revolucionário, mas reerguer o pacto de classes defendido pelo petismo e aplicado por mais de uma década.

Enquanto Lula sinaliza para o empresariado e para o centrão, pensando em um futuro governo com partidos de direita, Valerio Arcary acredita que a classe trabalhadora deve investir nesse caminho eleitoral como única alternativa.

A conciliação de classes com banqueiros, partidos de aluguel, coronéis, fundamentalistas religiosos e outros setores das classes dominantes foi o que levou ao golpe de 2016 e à ascensão do bolsonarismo. Lula e o PT não prometem nada para além disso, e pelo visto Valerio Arcary também não.

4 – Conclusão

Nós, anarquistas que compomos a Coordenação Anarquista Brasileira, acreditamos na necessidade de inserção social junto aos movimentos da classe trabalhadora como um meio de mudança. É na base, de baixo para cima, que se faz a luta.

Não concordamos com alternativas individualistas como centro da atuação política, descoladas das lutas sociais construídas com o conjunto das classes populares. Muito menos com direções burocratizadas dispostas a frear os avanços na luta em troca de cadeiras na esfera estatal, criminalizando ações mais radicalizadas.

Para nós, ação direta também é o povo organizado e participando ativamente, em assembleias nos bairros, nas fábricas, nas escolas e nas ruas, um povo composto por mulheres, LGBTQIA+, população indígena e negra, trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade. Uma ação direta que organize a rebeldia popular na construção de um novo mundo.

Coordenação Anarquista Brasileira

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