Memória

[FARJ] Um anarquista carioca: o escritor Lima Barreto e suas ligações com o movimento libertário

Em comemoração ao 139º aniversário de Lima Barreto, reproduzimos abaixo o texto publicado no emecê #22 (2012), informativo organizado pelo Núcleo de Pesquisa Marques da Costa, instância da Federação Anarquista do Rio de Janeiro.

Os anos de 2011 e 2012 representam, respectivamente, os 130 anos de nascimento (ocorrido a 13 de maio de 1881) e 90 do falecimento (em 1º de novembro de 1922) do escritor carioca Lima Barreto. Embora a admiração por sua produção literária cresça cada vez mais entre críticos, escritores, leitores e editores (recentemente teve sua obra relançada, com a inclusão de alguns textos que não constavam em edição anterior, da década de 1950), há um aspecto de sua vida que embora já divulgado, é pouco comentado: o de suas relações com o movimento anarquista.

Barreto nasceu ao final do regime monárquico no Brasil. Seu pai era um operário tipógrafo que exerceu posição de destaque em sua profissão, por ser mestre de composição da Imprensa Nacional (de onde foi demitido com a proclamação da República) e chefe das oficinas do Tribuna Liberal, órgão do Partido Liberal. Possuía razoável cultura e formação humanística, tendo traduzido do francês um Manual de Aprendiz Compositor. O amor à liberdade aparentemente despertou em Lima Barreto desde a infância, a partir do episódio da abolição jurídica da escravidão no país, ocorrida na data em que completava 7 anos, ao observar a alegria da população da cidade, e de seus colegas, outras crianças da escola pública que frequentava à Rua do Riachuelo, com a libertação dos escravos. Outro fato que deve ter pesado neste sentido ocorreria durante a revolta da armada em 1893 quando a Ilha do Governador, onde então residia (seu pai fora nomeado diretor da colônia de alienados ali existente então) foi ocupada, alternadamente, por tropas dos dois lados em conflito. Naquela ocasião seu pai lhe relatou conversa que tivera com um soldado que queria que lhe explicassem o porquê da luta entre estes dois homens: Floriano Peixoto (presidente da república) e Custódio José de Melo (almirante, chefe dos revoltosos da marinha). Embora de pouca idade, Lima concebeu como estúpido e indigno da condição humana que alguém arriscasse sua vida sem saber por que nem para que [1].

Seus primeiros contatos com militantes anarquistas parecem haver ocorrido logo após a virada do século XIX para o XX, se não contarmos o início de sua amizade com um José Oiticica (1881-1957) ainda adolescente e longe de se aproximar do anarquismo, seu colega no Colégio Paula Freitas, situado à Rua Haddock Lobo na Tijuca, em 1896 [2]. Teria sido em 1902 que Lima Barreto faria conhecimento com o jornalista, escritor e seu futuro colega de repartição (Secretaria da Guerra) Domingos Ribeiro Filho (1875-1942). O próprio Lima iniciava-se no jornalismo, depois de desistir de terminar o curso de engenharia na Escola Politécnica do Largo de S. Francisco. Discriminado por alguns de seus colegas brancos e ricos, perseguido por um professor que sempre o reprovava. Lima conheceria ainda naquele ano, em agosto, o drama de ver seu pai, arrimo de família, e ainda diretor da colônia de alienados da Ilha do Governador, enlouquecer, tornando-o responsável pelo sustento de seus irmãos e agregados.

Funcionário da Secretaria da Guerra, para onde Lima ingressaria por concurso pouco tempo depois, Domingos  Ribeiro Filho inseria-se em grupo de escritores que despontava ao início do século XX no Rio e que procurava praticar uma literatura de caráter social e que atraía escritores de ideologia libertária de várias tendências (comunistas libertários, individualistas, tolstoianos). Domingos filiava-se ao comunismo libertário após ser florianista na mocidade (1893), tendo mesmo se batido a favor do governo do Marechal Floriano Peixoto. Quando Lima Barreto o conheceu, liderava um grupo denominado “Esplendor dos Amanuenses” que se reunia no Café Papagaio, situado na Rua Gonçalves Dias, entre as ruas do Ouvidor e Sete de Setembro. Ali, frente a xícaras de café, sem consumo de bebidas alcoólicas (apesar de Lima estar se tornando cada vez mais uma pessoa com problemas com álcool), os escritores que o compunham, quase todos funcionários públicos (daí o título do grupo), empreenderam conversações que versavam sempre sobre “uma grande reforma social” relembradas por Lima Barreto em seu romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919) [3].

Outra figura de militante anarquista que esteve bastante próxima de Lima Barreto e deve tê-lo influenciado foi a do jornalista pernambucano Pausílipo da Fonseca (1879-1934). Um grande boêmio como Lima, Pausílipo alistou-se no exército como soldado raso, tendo posteriormente ingressado na Escola Militar (então na Praia Vermelha) de donde foi desligado em 1897 em função de suas convicções florianistas no governo de Prudente de Moraes, sendo deportado para Mato Grosso com setenta colegas. De volta ao Rio em 1899 publicou um ensaio literário intitulado Mártir pela Fé. Começa também a trabalhar na imprensa como operário gráfico, ascendendo a compositor, revisor, repórter e redator. Tornando-se anarquista, Pausílipo por volta de 1903 frequenta as rodas de escritores e jornalistas que se reúnem no Café Jeremias, inicialmente localizado à Rua do Ouvidor e, já na primeira década do século XX, logo após a abertura da Avenida Central (atual Rio Branco) na esquina desta com a Rua São José. Conhecendo Lima, Pausílipo interessa-se por levá-lo para o Correio da Manhã onde trabalhava e onde publicaria em 1911 sua novela social Vitória da Fome. Lima Barreto estrearia naquele jornal ali publicando em 1905 uma série de textos, misto de reportagem e novela, intitulada Os Subterrâneos do Morro do Castelo [4].

Domingos Ribeiro Filho foi um dos escritores anarquistas amigos de Lima Barreto a participar da revista literária Floreal, lançada em 1907 e que circulou até o início do ano seguinte. Literariamente os colaboradores da Floreal refletiam influências de escritores como Zola,Tolstoi e Eça de Queirós, e filosoficamente o pensamento de autores como Bakunin, Kropotkin e os filósofos Herbert Spencer e Jean Marie Guyau (este último bastante apreciado por Kropotkin em sua Ética). A pequena revista se eximia de estar ligada a clãs ou malocas literárias, e propunha-se a lutar contra os mandarins da literatura que dominavam a imprensa da época [5].

Em seus romances Lima Barreto deixa entrever sua visão crítica e libertária da sociedade brasileira de sua época (e da nossa), até pela escolha dos temas abordados. Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de 1909, mostra a luta de um jovem estudioso  do  interior, discriminado  social e racialmente, que só consegue vencer no jornalismo e depois conseguir um cartório no Rio ao descobrir deslizes dos donos do jornal em que trabalha como contínuo. Este livro teve que ser publicado pela primeira vez em Portugal, pois Lima não conseguiu editor no Brasil, o que só viria a acontecer em 1917. Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, publicado em folhetins na edição da tarde do Jornal do Comercio em 1911 e em livro em 1915, através do personagem do título, um Dom Quixote brasileiro que deseja reformar o país, o escritor mostra satiricamente como não se deve fazê-lo, e como não se deve confiar em messias e salvadores (no caso o Marechal Floriano Peixoto, presidente todo poderoso da república quando se passa a ação do livro). Já em Vida e Morte de M.J.Gonzaga de Sá (1919) Lima Barreto escolhe como alvo de suas críticas e sátiras a burocracia local. Em Clara dos Anjos, que só teve publicação póstuma, o escritor descreve o caso de uma moça negra, moradora de subúrbio, seduzida por um branco de mau caráter, que se recusa a assumir sua ligação com ela.

No entanto, um personagem explicitamente anarquista de Lima Barreto na ficção foi o Dr. Bogoloff. Militante na Rússia, tem que fugir para escapar à perseguição czarista. Imigrando para o Brasil, aqui se estabelece como pequeno agricultor. Não conseguindo sucesso nesta atividade, vende sua pequena porção de terra e vem tentar a sorte no Rio de Janeiro, onde por influência de cabo eleitoral de políticos da época consegue ser nomeado Diretor da Pecuária Nacional, ficando à frente de um projeto charlatanesco. Bogoloff aparece por duas vezes na obra de Lima. A primeira delas em uma série de fascículos vendidos em 1912 às terças-feiras nas bancas de jornal, dos quais só foram publicados dois. Parece estarmos a ouvir o próprio Lima Barreto a falar pela boca do personagem (Não esqueçamos que ele usou algumas vezes o pseudônimo de Dr. Bogoloff, o que confirma sua empatia com o personagem).

Em 1906, Lima Barreto foi convidado por Pausílipo da Fonseca a integrar-se como militante a um partido operário independente que estava sendo constituído no Rio de Janeiro. O escritor declinou do convite, alegando não ter a necessária velocidade mental para diariamente exercitar sua pena na sátira ao sistema, e que a crítica às autoridades poderia trazer represálias a ele, funcionário público subalterno que dependia de seus vencimentos para seu sustento e da família [6]. No entanto, no decorrer de sua atuação na imprensa, seus artigos vão adquirindo cada vez mais uma feição combativa, chegando a colaborar, paralelamente à sua atuação na imprensa comercial, em publicações operárias e mesmo anarquistas como O Cosmopolita (Órgão dos Empregados em Hotéis, Restaurantes, Cafés, Bares e Classes Congêneres, que circulou de 1916 a 1918), O Debate (editado por Astrojildo Pereira e Adolfo Porto no Rio de Janeiro em 1917), em A Lanterna (jornal anticlerical de S. Paulo com forte influência anarquista), A Voz do Trabalhador (1913-1915, órgão da Confederação Operária Brasileira),e A Plebe (S. Paulo).

Em 1921, visitou a redação de A Vanguarda quando de sua passagem pela capital paulista, onde conheceu pessoalmente companheiros anarquistas como Edgard Leuenroth e João da Costa Pimenta [7]. Em 1917 na matéria São Paulo e os Estrangeiros defende os grevistas daquele ano na capital bandeirante e condena a lei de expulsão de estrangeiros, que visava à deportação de militantes operários. No ano seguinte escreve texto mostrando admiração  por Vera Zassulitch que em 1878 atirara em Trepov, chefe da polícia política czarista e pela revolução russa (os anarquistas ainda acreditavam que esta caminhava para e por rumos libertários) exprimindo o desejo de que algo semelhante ocorresse no Brasil. Este artigo complementava outro de sua autoria publicado em A Lanterna, órgão anticlerical editado em São Paulo pelo militante anarquista Edgard Leuenrotjh. No  texto Da Minha Cela, ainda de 1918, defende os presos políticos em consequência da insurreição anarquista ocorrida no Rio naquele mês. No mesmo artigo contesta articulistas de jornais burgueses que sustentam que o anarquismo se baseia em Rousseau (como Bakunin já havia feito no século XIX). O mesmo acontece em artigo de 2 de dezembro seguinte [8].

De acordo com seu mais proeminente biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, Lima Barreto “nunca foi um, nem seria nunca, um revolucionário militante. Mas é fora de dúvida que sempre alimentou ideias, princípios e sentimentos anarquistas”, manifestando-os em sua colaboração tanto na imprensa anarquista quanto comercial, em suas obras de ficção e no contato frequente e/ou amizade com diversos militantes ácratas [9].

Milton Lopes

Notas:

1. BARBOSA, Francisco de Assis (1965) A Vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 3ª edição, pp.32-33, 52-53; BARBOSA, Francisco de Assis (1960) Lima Barreto Romance. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, p 5.
2. Idem, p.58. Oiticica relembraria este convívio em artigo no jornal A Rua de 25/05/1916.
3. GOMES, Danilo (1989) Antigos Cafés do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora, p 91. BARRETO, Lima (1956) Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Editora Brasiliense, p.106.
4. BARRETO, Lima (1956) Correspondência Ativa e Passiva 1º Tomo. São Paulo: Editora Brasiliense, p.153; BARRETO, Lima (1999) Os Subterrâneos do Morro do Castelo. Rio de Janeiro; Dantes Livraria Editora.
5. BARBOSA, 1965,pp.151,157-159.
6. Carta de Lima Barreto a Pausílipo das Fonseca em BARRETO, Lima (1956) Correspondência Ativa e Passiva 1º Tomo. São Paulo: Editora Brasiliense, pp.155-156.
7. BARBOSA,1965,pp.225-226, 314.
8. Todos os artigos citados estão contidos em BARRETO, Lima (1956) Bagatelas. São Paulo; Editora Brasiliense.
9. BARBOSA, Francisco de Assis (1965) A Vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

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