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Os últimos protestos e a classe dominante contra a saúde pública

Nos últimos dois domingos foram realizados protestos em diversas cidades do país. Os protestos rechaçaram o racismo estrutural e a violência policial, assim como expressaram a indignação frente a postura genocida do governo Bolsonaro diante a pandemia do Corona Vírus. 

Ante as manifestações, uma polêmica circulava nas redes. Motivada por músicos, intelectuais, membros de partidos políticos e outras referências, começou a se difundir a ideia de que o retorno às ruas seria uma irresponsabilidade política grande, frente a pandemia de covid-19 e seus possíveis impactos nos/as trabalhadores/as.

Para nós, não havia e não há dúvidas de que a escolha de ir ou não à rua é coletiva e não exclusivamente individual. Há uma leitura sobre o momento que estamos vivendo de parte de muitos movimentos populares e organizações políticas e do porque esse é o momento de ir pra rua. Temos acordo com essa leitura e fomos às ruas contra o racismo e por vida digna. Com todo o cuidado em relação às medidas sanitárias e a não exposição de pessoas do grupo de  risco.

Algumas constatações. O governo Bolsonaro, as elites políticas e a burguesia brasileira trabalharam cotidianamente para destruir quaisquer possibilidades das classes oprimidas manterem o isolamento social desde o início da pandemia. Hoje, essas forças conseguiram efetivamente destruir qualquer possibilidade de quarentena social para os/as trabalhadores/as e já se contam os milhares de mortos. O governo Bolsonaro-Mourão-Guedes sufocou e atrasou a ajuda financeira aos mais pobres, incentivou carreatas bolsonaristas pelo fim da pandemia, chantageou os governadores, deteriorou a ação do ministério da saúde, difundiu uma bateria de fake-news, ignorou as recomendações da OMS e, agora, trabalha com os militares para esconder a quantidade de mortos no país. 

Cabe dizer, que desde o início da pandemia, um contingente enorme de trabalhadores precarizados (maioria de pobres e negros) sem quaisquer direitos ou possibilidade de usufruir da quarentena com pagamento integral, foram obrigados a sair às ruas para trabalhar. Para esses sujeitos e setores, a quarentena nunca existiu. Ou se existiu, foi destruída pelo lucro voraz da burguesia brasileira e pela sandice bolsonarista, que usando de expedientes jurídicos e políticos, seguiu mantendo diferentes serviços e empresas em funcionamento.

A saída dos movimentos populares às ruas é, portanto, uma decisão de defesa da saúde coletiva e do direito à quarentena. Cada militante que se arriscou para ir às ruas nos últimos domingos, arriscou sua própria vida, em defesa das vidas negras e em prol de um direito coletivo de saúde, que é impedido pela ação criminosa do governo Bolsonaro. Para os/as moradores de favelas e a população negra, o direito a quarentena e ao isolamento foi desrespeitado pelo próprio governo e por sua ação genocida, operacionalizada pelas polícias militares, que mesmo na quarentena, assassinaram 15 pessoas no Complexo do Alemão (Rio de Janeiro/RJ), assassinaram o jovem João Pedro Mattos (14 anos) e seguem assassinando jovens e trabalhadores pretos nas favelas.

A burguesia e sua máquina de moer gente, fez com que a maioria do povo não tivesse condições de ficar em quarentena em casa. Esses trabalhadores foram obrigados a trabalhar, viraram as noites numa fila da Caixa para tentar conseguir o auxílio de 600 reais. Enquanto os de cima ignoram as recomendações de saúde da OMS, os trabalhadores ficam sem saneamento básico e sem água para se higienizar. Não possuem aparelhos nem internet para fazer ensino à distância ou ensino remoto, que o capitalismo quer impor ao povo como “política de educação”. E a maioria do povo que se contamina com o Covid-19 terá muita dificuldade para conseguir vagas e UTIs nos hospitais públicos, sucateados pelos cortes neoliberais. O governo Bolsonaro segue com o rolo compressor do ultraliberalismo matando a população, levando o país aos maiores números de contaminação e mortes do mundo. 

Nas periferias, vilas, favelas e baixadas, a falta de água, estrutura básica de serviços e infra-estrutura, mesmo com a ação aguerrida e organizada de moradores e movimentos populares, prejudicou quaisquer possibilidade de isolamento social. Muitos desses moradores, organizados/as ou não em movimentos populares, coletivos, organizações diversas, decidiram assim, arriscar suas vidas e sair às ruas, para dizer: Vidas negras importam! Chega de Racismo! Pelo Fim da Polícia Militar! E Fora Bolsonaro!

O reformismo se acovarda diante a luta

Mais uma vez a realidade atropela a conciliação de classes, o reformismo e o oportunismo da esquerda institucional. Movimentos de população negra, torcidas organizadas, setores populares se manifestaram pois já não aguentam mais a política de extermínio de negros e pobres do capital operada por governos como Witzel, Dória e pelo governo Bolsonaro.

Depois dos atos do último fim de semana afloraram as mesmas leituras sectárias e elitistas que vimos em 2013, de uma esquerda burocrática que permanece míope à realidade. Uma esquerda que abraçou de vez o carreirismo político-parlamentar e rompeu com o povo. E se o povo pobre e negro se organiza para ir para as ruas ou com participação de movimentos populares sem a tutela desta esquerda eleitoreira, não tardam os discurso de desqualificação e criminalização dos atos, fazendo coro com a mídia burguesa e com a direita. Ou considerando esses atos como “espontaneístas”, “desorganizados”, mesmo que estes tenham sido planejados coletivamente por diferentes forças políticas e sociais.

Temos uma Lei Antiterrorismo aprovada por Dilma (PT), e para parte desses intelectuais e organizações políticas, são as possíveis “vidraças dos bancos quebradas” que serão o estopim para Bolsonaro dar um “golpe militar”, e não o acúmulo político da classe dominante, escancarado com mais evidência, desde o golpe que derrubou a presidente em 2016. 

A política do Estado policial de ajuste é austeridade e violência e escancara a sua face renovada, dentro do contexto político-social deste período. Ainda vamos ter que conviver por um tempo com os riscos da contaminação, e buscar formas de lutar nessa realidade. E além disso, estarmos atentos para a utilização dos mecanismos e tecnologias aplicadas na pandemia em um maior controle e repressão social. Tecnologias de vigilância, violações de dados pessoais e monitoramento. Aplicação de medidas como quarentenas, fechamento de cidades, toques de recolher, proibição de manifestações de rua, Garantia de Lei e Ordem ou Estado de Sítio, com suspensão de direitos. A pandemia abriu vários precedentes e brechas para a repressão a movimentos sociais e manifestações, mesmo dentro do regime democrático burguês, que endurece e cria armadilhas. Aliado a isso, observamos um estado cada vez mais aparelhado por militares em cargos e secretarias do governo, e um possível cenário onde a defesa nacional se mescla cada vez mais a políticas de segurança pública, em um país onde a lógica da defesa é a do “inimigo interno”. 

Mais uma vez essa dita esquerda coloca a culpa da violência do Estado no povo, na manifestação popular. E não numa decisão estratégica equivocada que nos levou a uma derrota histórica sem precedentes. Estratégia de subordinar às lutas aos movimentos parlamentares, de abandonar as periferias e comunidades, de não fazer trabalho de base e de burocratizar qualquer ato que fuja do controle de determinadas vanguardas políticas reformistas. 

Diante das últimas manifestações populares, o PT, e seus satélites do campo democrático-popular, se acovardaram mais uma vez. Repetiram o mesmo papel histórico do reformismo, buscando sempre o acordo sem luta, a conciliação com o capital para manter o jogo “democrático” funcionando. Só que o capital não quer mais jogar este jogo.

A Frente Ampla é mais uma proposta de direita, que quer reabilitar o rei das privatizações, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), recolocando no jogo os mesmos oligarcas da política para novamente apertarem o torniquete no pescoço do povo. E o PT sabe que não pode apoiar a Frente Ampla da direita, para não perder sua base eleitoral e partidária. Mas também não radicaliza muito o discurso, nem incentiva a ida às ruas, porque ainda quer acenar para a mesma direita e para o capital, quer se colocar ainda como alternativa “responsável” e “republicana” da conciliação de classes, mirando as eleições municipais e federais em 2022. Quer uma solução por “cima”, sem que haja qualquer ameaça para as costumeiras e viciadas eleições. 

Mas ficar inerte diante da realidade, só pode nos levar a ser atropelado pelas forças reacionárias e golpistas! 

E com miséria, falta de saúde e violência não se convencerá o povo a sangrar até as eleições. Então mais uma vez, diante do povo nas ruas, a esquerda institucional e democrática tem medo, se acovarda, recua, não dialoga com o povo, não se faz presente nos processos sociais e reduz a ação política ao terreno viciado do parlamentarismo burguês. Para isso, utiliza teorias e aparatos viciados de análise da realidade, quase “teorias da conspiração de esquerda”, enquanto a realidade grita nas ruas. 

O que fazer, como agir?

Diante destes cenários o único papel que a esquerda pode assumir nesta conjuntura é buscar todas as formas possíveis de apoiar, mobilizar e participar de ações que confrontem a política genocida de Bolsonaro e apontem para a anulação de suas medidas anti-povo, racistas e anti-vida. Tentando manter ao máximo os critérios de saúde e segurança possíveis. Pois o bloqueio do avanço da direita bolsonarista e ultraliberal não vai se dar pelo Congresso nem pelo STF. Muito menos pelas frentes parlamentares, que inevitavelmente, levarão a acordos pela direita. Lutar contra Bolsonaro é uma questão de saúde pública e ética, mas a luta vai para além de sua figura, e para além de seu governo. Pois o capital ultraliberal não quer mais jogar no campo da democracia e da constituição. 

Nós, que acreditamos na ação direta, na organização em movimentos populares, defendemos que é preciso ter um papel de protagonista diante a realidade, elevando o nível da luta diante dos ataques da direita e dos capitalistas. Por isso, é necessário aprofundar o grau de organização, de segurança, disciplina, de vontade militante, para enfrentar tal conjuntura, que não permite ingenuidade ou nenhuma ação artesanal. 

É preciso reinventar as táticas que possam dar resposta ao contexto social em meio a pandemia. Não ser alvo fácil da repressão ou da burocratização com táticas repetitivas, nem substituir a ação concreta e de intenção revolucionária pelo palavreado radical vazio, que muito seduz em forma, mas que não diz nada, se não tem um conteúdo prático, se não organiza, se não constrói e aponta alternativas pelo exemplo.

Não podemos mais ter ilusões que vão ocorrer “giros keynesianos” ou políticas de desenvolvimento por parte do Estado. Não podemos esperar que o SFT e o congresso, esses fiadores do golpe nos direitos dos trabalhadores, resolverão o problema Bolsonaro. Abandonemos qualquer ideia de “normalidade” e de solução dentro da república burguesa.

Devemos trabalhar para canalizar a insatisfação de todos/as os/as trabalhadores insatisfeitos com o governo genocida de Bolsonaro em espaços organizados da nossa classe (sindicatos, movimentos comunitários, estudantis etc.) e impregnar esses espaços de combatividade, independência de classe, anti-capitalismo e solidariedade de classe, ao invés de somente considerar os trabalhadores como “futuros eleitores” de mais um projeto reformista que se coloca no horizonte de 2022. Aqui, nossa modéstia e generosidade deve guiar nossa ação política, trabalhando para incluir cada vez mais amplos setores da nossa classe social, dos oprimidos e oprimidas, ao invés de seguirmos nos mesmos espaços e categorias clássicas do mundo do trabalho.  Fortalecer a ação, a solidariedade e a organização de trabalhadores autônomos, terceirizados, precarizados e independentes.

É necessário fortalecer as instâncias e campanhas de solidariedade e cuidados de saúde nas periferias, bairros, territórios, escolas e fábricas onde estão os/as de baixo. Avançar em campanhas que respondam aos anseios e necessidades do povo – tais como a Campanha por Vida Digna – e ao mesmo tempo o organizem, acumulando força social para aumentar sua força eorganização. 

Para nós, militantes da CAB, vivemos mais uma etapa de resistência, um momento crucial. Redobrar os esforços revolucionários e a organização popular é algo fundamental, para provar que o povo pode lutar e vencer.

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