Gênero

Mês da Visibilidade Lésbica – lésbicas anarquistas na luta por vida digna

            O mês de agosto é um mês caro para a luta LGBTQIA+ no Brasil. Data do Levante do Ferro’s Bar[1], na cidade de São Paulo, em 1981. O bar era ponto de encontro de “entendides” na cidade. No contexto da Ditadura Militar e às vésperas da epidemia da AIDS, difamada como “Peste Gay”[2], o local era frequente alvo das forças repressoras e justiceiros da moral e bons costumes.

           No ano de 1996, também em agosto, aconteceu o primeiro Seminário Lésbico Nacional (SENALE), na cidade do Rio de Janeiro. No encontro, lésbicas e bissexuais das diferentes regiões do Brasil, debateram ações e influência na cultura e na construção de políticas públicas específicas, que respeitassem seus direitos, sua dignidade, sua sexualidade e seus amores. Essas ocasiões marcantes estabeleceram, respectivamente, os dias 19, para o Orgulho Lésbico e o 29, como Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, celebrando histórias de resistência, pluralidade e amor entre mulheres contra uma sociedade misógina e patriarcal.

           No entanto, aproximadamente 20 anos depois dos eventos, embora mais visíveis – e autorrepresentadas que em anos anteriores – ainda é preciso “chover no molhado” e dar vazão ao que está nas tramas; apesar do progressismo de governos anteriores, o Brasil permanece o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, com uma morte a cada 19 horas[3]. Essas violências são categorizadas e expressam-se como “[…] abuso financeiro, econômico e violência patrimonial, discriminação, negligência, tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, trabalho escravo, tráfico de pessoas, violência institucional, violência física, violência psicológica, violência sexual e outros (como o cyberbullying)”[4].

Recentemente, as manifestações de violência e assassinatos contra essas populações foram cartografadas por Ferreira Souza, Feliciano e Sampaio (2020), em o “Território de Morte, do Medo da Resistência LGBTQIAP+”, feito com base em dados coletados por ONGs e coletivos, que tradicionalmente realizavam a tarefa, na ausência do Estado (Grupo Gay da Bahia e Grupo Dignidade).

            Os dados deste documento demonstram que as grandes capitais, como Brasília, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador são fortes territórios de resistências e garantem relativa dignidade e organização à população LGBTQIA+. Já as capitais do Espírito Santo, Mato Grosso, Piauí, Maranhão e Rio Grande do Norte são territórios de medo, a compartilhar com Amazonas, Ceará, Rondônia, Roraima, Mato Grosso do Sul e Paraíba. Ou seja, a segurança relativa está associada aos grandes centros, mas não é uma garantia. Tampouco da notificação nas cidades de interior. Ainda é preciso complexificar a análise e questionar a respeito da efetividade do atendimento e tratamento pelas autoridades – muitas vezes havendo mais agressões desrespeito no ato – e qual metodologia é utilizada para coleta de dados. Porém, é um esforço pioneiro e louvável de difusão.

            No caso das lésbicas, ao sermos assimiladas, permanece a hierarquia perversa do sistema que elege o perfil de lésbicas brancas, magras, jovens, de classe alta, ou seja, identificadas com os signos da feminilidade ocidental. Não somos verdadeiramente respeitadas, mas toleradas e hiperssexualizadas. Enquanto as “camioneiras” sofrem agressões de “retificação”. Nossa sexualidade permanecerá promíscua enquanto discursos de ódio forem mais difundidos do que nossa expressão de gênero desviante do padrão feminino; do que o fato de amarmos verdadeiramente mulheres cis e trans e não um par opositor e complementar à masculinidade hegemônica cis, hétero e branca. Nossas demandas por respeito permanecerão inalteradas enquanto a criminalização da LGBTQIA+ for um paliativo, e a educação das relações de gênero não for norma; enquanto as religiosidades afrodiaspóricas forem perseguidas e o fundamentalismo cristão for a mesma lei que nos castiga nos lares.

Cada letra desta sigla, é um corpo: lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, intersexuais e assexuais[5]. Na intersecção dos corpos negrxs e dos povos originários, em um regime assumidamente genocida, é endereçada uma violência dolorosamente específica e retificadora à norma elitista dita como universal, branca, cisgênera, heterossexual e cristã. Isso demonstra que por maior que seja a tentativa de assimilação dos modelos de cidadania do patriarcado heterossexual: pelo casamento, adoção e construção de uma família mononuclear (ainda que seja o desejo de muitas tê-los); de incorporação pelo sistema capitalista, como consumidoras; pelo reforço de um padrão branco de raça e classe; a governabilidade no Brasil continua sendo incompatível com a dignidade e a vida de LGBTQIA+. Apesar de iniciativas tímidas, o projeto político institucional nacional é consciente e ampara a violência dos crimes via Estado, fazendo da luta institucional apenas demandas carentes de atenção e recursos, algumas conquistas democráticas com finalidade de controle – como, por exemplo, o reconhecimento do nome social para pessoas trans – o que por fim, demonstra a importância da auto-organização em movimentos sociais desde baixo, independentes, solidários, na luta por direitos e sobrevivência.

            Todas essas situações se agravam durante as crises do sistema capitalista e consequente instabilidade no modo de vida dos opressores. A pandemia do COVID-19 não foi exceção. Com a crise econômicas, muitas somos obrigadas a retornar às casas onde não somos bem-vindas e respeitadas, ou perdemos nossos lares e somos deixadas a esmo. Somos trabalhadoras, muitas vezes precarizadas subcontratadas, por conta de nossa aparência. Somos também mães e avós, que precisamos de renda para cuidar daqueles que dependem de nós. Também abortamos. Também somos vítimas da violência doméstica (é necessário que se diga) e nos bairros onde moramos.

            Mais uma vez é preciso que algumas demandas sejam repetidas, até à náusea, até que a dignidade e o respeito se tornem permanentes… ou sejam tomadas.

Contra toda violência e discriminação contra dissidências sexuais.

Contra o avanço conservador e pelo direito à existência plena de todos os corpos!!!


[1]     Performance “Francha com Francha” dirigida  e salvaguardada por Maria Angélica Lemos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9aqslNoUqpc

[2]     Iconografia da epidemia da AIDS no Brasil, na década de 80. Disponível em: http://www.ioc.fiocruz.br/aids20anos/linhadotempo.html

[3]     Estatísticas a respeito dos assassinatos de pessoas LGBTTQIA+. As mulheres trans e travestis permanecem as mais vulneráveis e expostas aos crimes e ao abandono institucional. Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/brasil-mais-mata-lgbts-1-cada-19-horas/

[4]     VENCESLAU, Igor. Medo, Assassinatos e Resistência LGBTQIA+ no Brasil. Outras Palavras Disponível em: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/outras-cartografias-medo-assassinatos-e-resistencia-lgbti/?fbclid=IwAR2jHXEZTWGyShZSrtELnY_SEF80_1ZnVWOOBSGYsDrWRps5ezse_D7pgqs

[5]      Para maiores detalhes ver Dossiê do Lesbocídio no Brasil (2018) e Dossiê LGBTT (2017)

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