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Estado e capitalismo têm fome, o povo é o devorado

Estado e capitalismo têm fome, o povo é o devorado

Recentemente vivenciamos a questão do aumento do preço do arroz, feijão, óleo de soja, cebola. Os últimos dados sobre a inflação, divulgados pelo IBGE, confirmam o aumento do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Fato que o povo já vinha sentindo na pele através do aumento do custo de vida caro1. Uma crise inflacionária que atinge os três principais produtos da base da alimentação do povo: o feijão aumentou 30%, o leite 20% e o arroz 20% em média nas cidades. Consequentemente, a cesta básica teve um aumento variando entre 15% e 20% nas capitais.

A alta do preço dos alimentos é muito grave na atual conjuntura do nosso país. Em recessão econômica, com a queda de 9,7% do PIB no segundo trimestre, crise da pandemia de Covid-19 e alto índice de desemprego. Estamos em um país onde 65 milhões de pessoas entraram com pedido e receberam o “auxílio” de 600 reais e outros milhares que ainda aguardam. Seguindo a cartilha liberal, o governo Bolsonaro, num cinismo cruel, diz que a redução do “auxílio” para 300 reais vai ajudar a segurar a alta dos preços dos alimentos em um “movimento natural”. Ou seja, o “natural” é o povo pagar a conta da crise do capital e morrer de fome.

No quadro em que estamos vivendo, podemos identificar causas econômicas e imediatas, mas há também causas estruturais e ambas relacionadas às políticas dos poderosos que dominam e pautam historicamente nosso país.

A fome é lucrativa

Há um processo de especulação sobre os preços por conta do monopólio do controle dos estoques de alimentos e de mercado. Tudo isso vinculado à lógica do modelo produtivo do agronegócio, que transforma os alimentos em commoditie, mais uma mercadoria especulável. O leite, por exemplo, tem seu preço controlado por empresas que têm o oligopólio do mercado nacional, como a Nestlé, Parmalat, Danone e outras.

Em nível global, produtos como trigo, milho, soja, óleo de palma, açúcar e arroz são as principais matérias-primas agrícolas comercializadas. E vai ser a situação do mercado, a qualidade e o preço que determinam se essas commodities são vendidas como alimentos, agrocombustíveis ou ração para animais2.

No mundo, quatro grandes empresas dominam a importação e a exportação de commodities agrícolas: Archer Daniels Midland (ADM), Bunge, Cargill e Louis Dreyfus Company. Conhecidas como “grupo ABCD”. Elas comercializam, transportam e processam diversas commodities. Possuem navios oceânicos, portos, ferrovias, refinarias, silos, moinhos e fábricas, e representam 70% do mercado mundial de commodities agrícolas3. Ou seja, o lucrativo comércio em si destes produtos já movimenta milhões de dólares em operações de mercado, de logística etc. Sem falar que algumas destas empresas também estão envolvidas com a produção de pacotes de sementes transgênicas, venenos e maquinário agrícola.

A especulação tem desempenhado um papel relevante no aumento da demanda por produtos de investimento relacionados à agricultura e às terras agrícolas. No mercado de futuros de trigo dos EUA, por exemplo, estima-se que os especuladores financeiros representam cerca de 70%. São centenas as empresas de fundos de investimento ligados à agricultura, controlando bilhões de dólares de ativos como futuros de commodities, terras agrícolas, empresas de insumos agrícolas, além de frigoríficos e traders (profissionais que ganham dinheiro com operações de curto prazo, como ações e contratos de futuro). Ou mesmo empresas do agronegócio que têm seus próprios braços de investimento financeiro. Suas decisões sobre armazenar ou vender um produto podem influenciar os preços e, desse modo, elas podem se beneficiar enormemente dos novos mercados financeiros. Essa financeirização, com o influxo de investidores de capital (que muitas vezes têm outra origem, como fundos de pensão), também contribuiu para uma onda de aquisições de terras, em que acionistas podem investir na produção agrícola sem ter que comprar commodities ou terra4.

Voltando ao Brasil, essa lógica do mercado financeiro vai ser tocada pelas políticas ultraliberais de Guedes e Bolsonaro, como por exemplo com a desestruturação dos estoques estratégicos de alimentos. Desde 2015, no segundo governo Dilma, há um processo de desmonte dos armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Em 2019, o governo Bolsonaro fechou 27 armazéns da Conab, com o argumento de que o Estado não pode arcar com custos de R$ 10 milhões ao ano e que os armazéns não geram lucro. Mas a finalidade dos armazéns da Conab não é lucrar, mas estocar alimentos que garantam minimamente que o país não fique totalmente entregue às especulações e flutuações de mercado como estamos vendo agora5. Sabendo que as políticas para a Conab estão muito distantes de beneficiar os pequenos agricultores e garantir acesso à comida para o povo.

Os alimentos armazenados também podem ser vendidos com valores reduzidos para controlar o avanço da inflação. Na década de 1980, havia mais de cinco milhões de toneladas de arroz nos armazéns da Companhia, sofrendo oscilações até se esgotarem de 2012 para cá: hoje restam cerca de 21 mil toneladas, menos de 0,2% da demanda anual interna brasileira, de 10,8 milhões de toneladas6 [6].

Dessa forma, o agronegócio é a forma que o ultraliberalismo opera no campo e nas florestas, com apoio da Rede Globo ao reproduzir a mentira de que o “Agro” produz alimentos, quando na verdade só produz especulação financeira e lucro, fazendo o povo passar fome.

A questão fundiária é central

O Brasil traz em sua formação histórica e estrutural elementos como a colonialidade, a escravidão do povo negro, o genocídio das nações indígenas, como chagas que permanecem abertas no povo e nunca cicatrizam.

E se falamos em produção de alimentos temos que olhar para a brutal concentração de terras no país, em sua maioria ociosas, para a especulação ou voltadas para a produção de commodities. No Brasil, 51,19% das terras agrícolas estão concentradas nas mãos de apenas 1% dos proprietários rurais e 45% da área produtiva concentrada em propriedades superiores a mil hectares (0.91% do total de imóveis rurais). O país possui 453 milhões de hectares sob uso privado, que correspondem a 53% do território nacional7.

Nessa concentração de terras, a produção não é de alimentos, mas de commodities para exportação. Principalmente soja, milho, cana, algodão e pecuária extensiva, cujas áreas só aumentam. Enquanto que as áreas destinadas para produção de alimentos, como de arroz, feijão, mandioca, gado de leite tem diminuindo cada vez mais. Essa é a situação do feijão, que tem 42% de sua produção de pequenos e médios agricultores, mas com cada vez menos políticas de incentivo à produção.

Ao mesmo tempo, há a expansão das fronteiras agrícolas sobre territórios do país, voltadas para mais produção de commodities para exportação. Avanço que se dá especialmente no Cerrado, com 178 milhões de hectares registrados como propriedade privada e apenas 7% de sua área protegida, e com os maiores índices de desmatamento no Brasil. Grande parte dessa expansão sobre o território do Matopiba (área de 400 mil km² que envolve o Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), com apenas 10% de área protegida, e 57% dos imóveis rurais nas mãos de grandes proprietários.

Por outro lado, mais de 70% da produção de alimentos do dia-a-dia vêm de pequenos estabelecimentos rurais de até 200 hectares. O povo do campo, camponeses e pequenos agricultores, que são maioria em relação aos latifundiários, ocupam apenas 29,9% da área total da agricultura do país e produzem a maior parte dos alimentos que a população consume no país.

Apesar disso, as políticas de governo para a agricultura, o campo e florestas sempre foram um “morde e assopra”, destinando migalhas e repressão para os pequenos e pobres, enquanto os grandes sempre tiveram mais incentivo e proteção do Estado. Se no governo FHC houve repressão e ataques diretos ao campo e seus movimentos sociais, os governos do PT também operaram políticas com a centralidade no agronegócio e na financeirização de commodities, paralisando de vez a Reforma Agrária. Com Temer e Bolsonaro avançou e piorou o que já estava ruim. As poucas políticas públicas burocratizadas, que excluíam os pequenos e precarizados agricultores com dificuldades e sem estrutura para acessar, foram sendo cada vez mais destruídas. Recentemente teve o veto de Bolsonaro ao PL 735/20, como propostas emergenciais dos movimentos do campo para garantias de produção e acesso a alimentos ao povo nesse momento de crise da pandemia. Ou seja, o governo Bolsonaro só reafirma o que sempre defendeu: que dele não virá nada para o povo do campo, só violência sobre as comunidades e devastação e expropriação dos bens naturais.

O revolucionário mexicano Ricardo Flores Magón já chamava a atenção de que as terras devem estar em poder de quem nelas vive e trabalha, e o quanto isso é fundamental para a derrubada do capitalismo. Pois o capital entende que a terra é a “fonte natural de todas as riquezas”, utilizando-se dela para extrair os minérios e matérias-primas para a indústria, os grãos para as commodities, a madeira, a carne com o gado extensivo de corte, as águas para geração de energia8. Por isso Magón defendia a tomada e expropriação das terras dos grandes fazendeiros pelos camponeses indígenas e para seu uso coletivo em benefício da comunidade, em vez de uma “reforma agrária” que indeniza o proprietário e mantém a lógica da propriedade privada da terra.

A questão fundiária não se restringe, portanto, à produção de alimentos, mas à luta histórica pelo direito das comunidades viverem nos territórios contra a marcha genocida dos poderosos sobre o campo e as florestas. Nesse sentido, os movimentos sociais defendem a ideia de Soberania alimentar, que seria a população de cada território ter as condições, recursos, técnicas e apoio necessário para ser soberano e protagonista de seu próprio destino para produzir seus próprios alimentos de acordo com as necessidades locais. E ainda, o direito dos povos de controlar suas próprias sementes, terras e água, garantindo a reprodução de sua cultura e acesso dos povos a alimentos variados e nutritivos, de forma independente, coletiva e comunitária. Com base no pensamento do Bem Viver, dos povos originários em convivência com a vida de outros seres e o planeta, das organizações populares de base, afirmando “os direitos dos povos de controlar seus territórios, seus recursos naturais, sua fertilidade, sua reprodução social e a integração entre etnias e povos de acordo com interesses comuns, e não apenas determinados pelo comércio e o lucro”. Afirmando também o protagonismo das mulheres e o combate ao patriarcado presente no modelo colonial, inerente ao modo de produção capitalista9.

E a Soberania alimentar só é possível com a organização popular e movimentos sociais fortes e independentes dos vícios burocratas dos partidos. O reformismo e a política de conciliação só trouxeram sofrimento e desmobilização aos movimentos sociais que buscaram ser “parte do governo”, como gestores de políticas públicas. O único caminho é ocupar os espaços sociais, mobilizando o povo na luta por vida digna e poder popular, contra o projeto de morte do capital.

A agroecologia e a agricultura camponesa propõem a produção de alimentos saudáveis, sem veneno, a preço justo e segundo as necessidades dos territórios. Em oposição à lógica de mercado do agronegócio, que mesmo em meio a uma pandemia só busca exportar para garantir seus lucros altíssimos, que não pararam de crescer, enquanto o povo perece de fome. Por isso é necessário construir o poder popular a partir dos territórios agroecológicos no campo e na cidade, no cotidiano onde se vive, se trabalha, se produz alimentos e se cuida das sementes tradicionais.

Notas:

1 “O drama do arroz expõe as misérias do Agro”

2 Atlas do Agronegócio 2018. p. 28-29

3 Idem

4 Atlas do Agronegócio 2018. p. 44-45

5 “O drama do arroz expõe as misérias do Agro”

6 Idem

7 Atlas do Agronegócio 2018. p. 14-15

8 “A tomar la tierra”. Ricardo Flores Magón. Regeneración, no. 75, 3 de febrero de 1912

9 Dicionário de Educação do Campo. p. 714-723

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